A
festa é caseira, mas farta. Todos os anos, no mês de setembro, ela acontece em
milhares de lares baianos. Difícil imaginar uma mais sincrética. O “Caruru de
São Cosme e São Damião” homenageia os santos gêmeos da igreja católica, os
Ibêjis do candomblé e também as crianças. Tudo precisa ser feito no mesmo dia:
caruru, xinxim de galinha, vatapá, arroz, milho branco, feijão fradinho, feijão
preto, farofa, acarajé, abará, banana-da-terra frita e os roletes de cana. A
dimensão da oferenda é medida pela quantidade de quiabos do caruru. Cada um faz
como pode: mil, três mil ou até 10 mil quiabos. Quando a comida fica pronta,
coloca-se uma pequena porção nas vasilhas de barro aos pés das imagens dos santos,
ao lado das velas, balas e água. Depois, serve-se o caruru a sete meninos com,
no máximo, 7 anos cada. Eles comem juntos, com as mãos, numa grande gamela de
barro ou bacia. Só então é a vez dos convidados participarem da celebração.
A
história da devoção a São Cosme e São Damião é antiga e atravessam continentes.
Na Bahia, a fé nos santos irmãos ganhou importância principalmente pelo
sincretismo com Ibeji, o orixá duplo dos nagôs, que representa os gêmeos. A
mistura foi tão completa que ultrapassou a fronteira das religiões e classes:
católicos e adeptos do candomblé, ricos e pobres oferecem a mesma comida
sacrificial do candomblé às imagens dos santos cristãos. E mais, chega-se a
fabricar imagens dos santos que incorporam uma terceira figura – Doú – uma
corruptela de “idowu”, o nome dado, numa família nagô, àquele que nasce depois
de um par de gêmeos. “Sempre tidos como muito traquinas, os idou deram origem
ao ditado nagô: Exu lehin Ibeji – Exu vem depois dos Ibeji”, explica o
antropólogo Vivaldo da Costa Lima, em seu texto “Cosme e Damião no Brasil e na
África”.
Quem
assume a devoção aos santos e a obrigação de oferecer o caruru todos os anos,
geralmente tem um bom motivo. Há 25 anos, no mês de setembro, Joselita Bulhões
deu à luz a um dos seus filhos. Muitos moradores de Muritiba já estavam
envolvidos com as festividades para os santos, que incluía caruru e foguetes. A
criança, que tinha nascido com problemas respiratórios e peso excessivo – seis
quilos -, por ter engolido o líquido da placenta, foi imediatamente para o
médico. À noite, quando tinha retornado para casa, já à salvo da primeira
dificuldade que enfrentou no mundo, o bebê novamente correu risco de vida. O
vizinho da casa em frente resolveu soltar foguetes para homenagear os santos. O
primeiro deles quebrou uma telha da casa de Joselita e caiu sobre o travesseiro
onde o bebê dormia a poucos centímetros do seu rosto. Interpretando esses
acontecimentos como provas da intervenção dos santos irmãos, Joselita decidiu
oferecer, todos os anos, o caruru em homenagem a eles. Hoje adulto, o seu
filho, que também se tornou médico, como Cosme e Damião, faz questão de
colaborar para manter a tradição.
Na família do Mestre Curió, da capoeira Angola, a tradição do caruru vem dos antepassados.
“Começou
com meu bisavô, passou pra meu avô e depois pra meu pai, que parou porque
entrou para a lei de crente”. Além da vontade de prosseguir com a tradição
familiar, Mestre Curió decidiu “tomar essa responsabilidade” por uma
impressionante coincidência na sua vida: “Sou gêmeo, minha mulher é gêmea,
tenho um casal de gêmeos e minha mãe era gêmea”. O caruru, que ele oferece em
janeiro – mês do seu aniversário e do seu grupo de capoeira – acontece em três
etapas. A primeira é na academia Mestre Pastinha, com três mil quiabos. A
segunda, na academia dos Irmãos Gêmeos – para os sete meninos, alunos e
convidados. E, depois, em sua própria casa.
Oferenda,
sacrifício e obrigação.
Os
santos são católicos, mas a forma de homenageá-los é africana. Segundo o
antropólogo Vivaldo da Costa Lima, “os iorubás, em suas várias etnias, entendem
o sacrifício, o ebó, como a forma essencial da sua comunicação com os orixás”.
O caruru – dos Ibeji ou de São Cosme e São Damião “seria, então, mais do que
uma oferenda, mas um sacrifício: o que na Bahia, o povo-de-santo chama de
‘obrigação’, que tem um preço e custa dinheiro. É como se desfazer de algo
muito valioso”. Joselita Bulhões conta que, nesses 25 anos, pensou algumas
vezes que não fosse fazer o caruru, por causa de problemas financeiros, mas
sempre conseguiu manter a promessa. “Pra mim, eles são santos vivos: o que você
pedir, eles atendem. Uma vez, a situação estava tão difícil, que eu fiz uma prece
bem forte. Na mesma hora, meu marido entrou. Tinha conseguido um dinheiro, nós
mudamos de casa e eu fiz o caruru”, conta ela, que tem um pequeno oratório para
os santos na lavanderia de sua casa. Hoje em dia, oferece anualmente um caruru
completo e farto, com mais de dois mil quiabos escolhidos cuidadosamente na
Feira de São Joaquim.
Nas
últimas décadas, tem sido feita frequentemente uma associação entre os santos
católicos e os erês, que é um estado infantilizado do transe no candomblé. Por
isso, inclui-se a distribuição de balas, doces e refrigerantes nas homenagens
aos santos, especialmente no Rio de Janeiro. Mas são poucas as casas de
candomblé que fazem obrigações para os Ibeji, geralmente discretas e não
necessariamente em setembro. Outro detalhe é que não se tem notícias de
filhos-de-santo de Ibeji na Bahia.
I B E J I
Coisas
da Bahia
Todos
os dias, antes das 6h, quando acontece a primeira missa na Igreja de São Cosme
e São Damião, no bairro da Liberdade, já é possível encontrar pessoas na porta.
Pequena, simples, mas visitada durante o ano inteiro, a igreja precisa conviver
cotidianamente com o sincretismo que caracteriza a devoção a esses santos. “Só
na Bahia existem essas imagens com Doú. Quando as pessoas as trazem, nós
explicamos que não podemos benzer e elas trocam as imagens”, explica o padre
Ciro. Com muitos fiéis também em outros países, o padre lembra que existem
igrejas para São Cosme e São Damião em Roma e no Rio de Janeiro, e que existe
uma missa própria para eles na liturgia católica. O dia reservado para os santos
é 27 de setembro.
Para
os católicos, não há provas de que os santos fossem gêmeos. Conta-se que eles
eram irmãos, nascidos na Arábia e filhos de uma viúva. Formados em medicina, na
Síria, além das curas realizadas, pregavam o cristianismo. Por estarem
convertendo muitas pessoas e também por trabalharem gratuitamente, foram
perseguidos e condenados pelo tribunal de Lísias. Sofreram muitas torturas, às
quais sobreviveram, até que, em 303, foram decapitados. “Eles são santos muito
carismáticos, porque defendiam os humildes, curavam as doenças físicas, sem
nunca terem cobrado um centavo. Curavam, também, as doenças da alma”, comenta o
padre Ciro, explicando a legião de devotos que os santos conquistaram nos
últimos séculos.
Vitalino
dos Santos, 67 anos, que trabalha na Paróquia de São Cosme e São Damião desde
1957, já viu muitas formas de manifestação de fé. “As pessoas trazem velas para
acender e imagens para ficar na igreja”. Para ele, seja no caso de São Cosme e
São Damião ou qualquer outro santo, o mais importante é o exemplo que deixaram:
“Os santos foram pessoas como nós, que enfrentaram muitas dificuldades, mas com
força e coragem”.
Comida de sexta-feira
Seja
por motivos religiosos, gustativos ou nutricionais, o caruru é um prato sempre
presente na mesa baiana. Já é uma tradição: na sexta-feira, a maioria dos
restaurantes da cidade inclui o prato no cardápio. Em setembro, por causa do
caruru religioso, os comerciantes aproveitam para subir os preços dos produtos,
porque têm a certeza de que as vendas irão aumentar.
Na
Feira de São Joaquim, onde a maioria dos devotos se abastece, o preço do quiabo
varia a cada dia de setembro. Segundo o feirante conhecido por Toinho, as
vendas já foram bem melhores. “Agora todo mundo é crente, pouca gente dá
caruru. Antes, numa rua qualquer mais de 10 casas dava caruru”, afirma ele, sem
negar que o aumento das vendas ainda acontece. “Se normalmente eu vendo quatro
sacos por mês, em setembro, são oito ou 10 sacos de quiabo”, sintetiza o
feirante José Paes.
Sobre
os preços, a feirante Maria Lúcia Falcão explica: “Ontem, o cento estava por
R$2,00. Hoje está por R$1,50, porque entrou mais quiabo. Depois do dia 10, vai
para R$2,50 ou R$3,00”.
Alguns
usam só quiabo, cebola, sal, camarão e azeite de dendê. Outros acrescentam
castanha, amendoim, pimentão e tomate. Segundo a nutricionista Joseni França, o
caruru é mesmo um prato muito rico: “O quiabo tem muito ferro, mas um tipo de
ferro que para ser melhor assimilado precisa ser combinado com fontes de
vitamina C, como limão, tomate, pimentão. O dendê tem o betacaroteno, que o
nosso corpo transforma em vitamina A, boa para a pele e para os olhos. Já com
as castanhas e o amendoim, o prato ganha em proteínas e uma forma saudável de
gordura”.
CURIOSIDADES
Mas
por que caruru para sete meninos? Segundo a peculiar tradição afro-luso-baiana,
existiam sete irmãos: Cosme, Damião, Doú, Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi,
conta Odorico Tavares, em seu livro “Bahia – Imagens da terra e do povo”. - A fertilidade
das iorubás, que tem inclusive motivado pesquisas médicas, provavelmente é um
dos motivos da importância dos santos e orixás irmãos. A Nigéria, inclusive, é
o país com o maior índice de nascimento de gêmeos no mundo inteiro. - No modo
africano de homenagear os Ibeji e também outros orixás, o pedido de esmola para
a preparação da comida é um ponto fundamental. A mesma tradição já existiu na
Bahia, mas foi abandonada pela maioria das pessoas. Entretanto, ainda é
possível encontrar quem mantenha esse costume, inclusive fora da Bahia. -
Existem várias recomendações para quem faz o caruru, que cada um escolhe
obedecer ou adaptar. Quem oferece o caruru deve cortar o primeiro quiabo e,
depois de pronto, colocar a comida aos pés dos santos em vasilhas novas e fazer
um pedido. A galinha do xinxim não pode ser comprada morta. Durante a festa não
deve ser servida bebida alcoólica. E quem encontrar no prato um quiabo inteiro
deve oferecer um caruru no próximo ano.
Sugestões de leitura
LIMA,
Vivaldo da Costa. Cosme e Damião: o culto aos santos gêmeos no Brasil e na
África. Salvador: Corrupio, 2005. ____. Oferendas e sacrifícios: uma abordagem
antropológica. In:
FORMIGLI,
Ana Lúcia (Org). Parque Metropolitano de Pirajá: história, natureza e cultura.
Salvador: Centro de Educação Ambiental São Bartolomeu/Editora do Parque, 1998,
p. 57-65.
TAVARES,
Odorico. Bahia: imagens da terra e do povo. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio Editora, 1951.
O
Sibarita/ Agnes Mariano