Alagados (Palafitas)
Caro leitor, por solicitação de um grupo de estudo faço nova postagem desta poesia que fala da minha infância nas palafitas, Vila Rui Barbosa, em Salvador/Bahia, onde, nasci e me criei.
Dedicada aos meus amigos de infância da pontes Santo Antônio, Copacabana, Chile, Almirante Tamandaré, Monteiro Lobato, Gelasio Farias, Castro Alves...
Em memória aos que se foram: Gilson Caruru, Lurdes, Carlinhos Negão, Gilcéia, Vando, Mário Nagô, Valtemir, Luiza, Toínho Magriça, Luiz Bilita, Paulo Paiapaia...
Alagados (Palafitas)
Os versos,
são memórias e sonhos
da maré como lembrança
nos desejos da infância
vivida nas palafitas...
De pés descalços
correndo sobre as pontes
catando raios de sol
nas asas de um beija-flor!
Meu coração tinha enredos:
Melancolia e fantasias
palpitavam como folias
e desfilavam sem alegorias...
À noite
os momentos eram
infinitos, um fifó aceso
espantando a escuridão,
gatos lânguidos esfomeados,
ratos correndo dos algozes,
pés descalços e tamancos rachados
fugindo da leptospirose...
O tempo à noite
sempre se estendia.
Eu tentava empurrá-lo
com as mãos, pura agonia!
Ele teimava desfilar, entre,
os meus dedos lentamente...
Segundos, minutos, horas e dias.
Parava o tempo!
Uma Ave Maria e um Pai Nosso
para amenizar o sofrimento...
Pela fresta,
viam-se as últimas gotas
de estrelas trêmulas
circulando sobre
tábuas podres sobrepostas
e esqueletos de caibros
sob a lua que ludibriava
os telhados...
O dia
florescia na enchente
atiçada pela maré de março.
Em cada barraco, olhos velados
retiravam o que tinha e o que não tinha...
Sufoco! O povo dos alagados
recorria a todos os santos,
sob a luz de um sol minguado...
Correi marezeiros!
Há nas pontes,
dependurados e sombreados:
desejos da vida, sangue em lágrimas,
trapos velhos e penicos furados
rasgando o ventre dos sonhos,
sempre, macerados!
Bocas de caranguejos
asas de morcegos
e nenhuma flor como desejo...
A maré cheia
convidava ao mergulho.
Crianças davam caídas,
era o prazer do corpo na água,
o debater de braços e pernas, nadar!
Ingenuidade da flor idade,
na borda do prazer,
a cilada montava o cenário,
entre, lixos, galhos e estacas.
O perigo é fatal... Tarde demais!
No azul, um sol de tempestades.
A morte é crua, a felicidade é fugaz,
na adversidade mais um que se vai!
Erguia-se um silêncio,
havia uma alma desesperada,
em fuga, pedia a extrema-unção!
A tarde uivava, a dor se curvava,
nenhum padre, nenhuma benção,
mas, à noite te virá em orações!
Naqueles momentos,
a maré cumpria a sua sina,
vestia-se de cinza
e na desesperança das lágrimas,
uma chuva fina...
Mas, não sei, era paradoxal!
Pratos vazios, tripas em revoluções,
urubus, cachorros e ganhamuns
lutavam por comidas no beira mangue.
Siris magros e mariscos aferventados,
crianças amareladas exangues.
O prato se repartia, mercúrio disputados,
lombrigas faziam greve de fome...
Um novo dia pintava, era a dona esperança!
Ela enganava a todos, saia de fininho e
se jogava das pontes, comida para pratos vazios.
Ai Deus! A fome rugia nos alagados, nua e crua!
Enquanto, a morte, despudoradamente deitada
nos telhados filmava a cena de binóculo
na aba de pratos sonhados...
Sob um céu de jade,
natal chegava com luas estreladas!
Nos olhares quanta alegria
escondendo a dor, a melancolia...
Os barracos eram enfeitados,
no piso de tábuas carcomidas
a areia branca dava um toque mágico,
nos alagados enfim, tinha vida!
Nos jarros barro,
galhos de pitanga e espada de Ogum.
Folhas de arruda presas nas portas,
sal grosso nos telhados e alfazema
para espantar os maus olhados,
gatos pretos ludibriados...
A noite é o olhar e virá em clarões!
Nas janelas:
nenhum chinelo, nenhum tamanco...
nenhum chinelo, nenhum tamanco...
Papai Noel nunca vem, disfarça!
Nem ao menos uma bola, uma boneca,
crianças da maré sonham descalças!
No fundo de nós,
uns olhos de tormentos
torturados por natais iguais
a procura de manhãs desiguais!
Valei-nos Jesus menino!
Lembrai dos seus pequeninos,
em suas mãos os nossos destinos!
O Sibarita
NA: Na foto sou um deles.
NA: Na foto sou um deles.
14 comentários:
Siba; eu já conhecia um pouco dessa parte da sua vida, mas nem de longe imaginava de forma tal. Nossa Siba, um lindo e emocionado poema, onde discorre sobre uma página triste e real, que me dá o maior orgulho de você.
Eu acho que sei quem é você na foto.
Me emocionou, viu? Beijos
Ok! Emocionante, não tem como segurar uma lágrima,então que ela role, enquanto lemos, vamos refazendo as cenas da tua infância e de tantas infâncias ainda por aí. Não tenho palavras para dizer o quanto de beleza há nesse poema crônica.
bjão!
Lindeza!
Meu amigo, na verdade, todos nós, brasileiros e latino americanos, povos milenarmente maltratados e oprimidos, estamos ali, na sua foto. A nossa fome maior sempre será de justiça social. Seremos saciados, um dia? Já começo a descrer, pois o que era errado, atualmente, virou o certo. Há um baiano que você também conhece, Caetano Veloso, que cantou Podres Poderes e..."alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial"(gosto de cantarolar esse pedacinho).
Seu sentido e dolorido poema, sua história de vida fazem parte da história de todos nós, mesmo daqueles que sempre fingem estar tudo bem.
Obrigada pela felicitação pelo Dia do Escritor, pois embora não o seja, algo dentro de mim impeliu-me para o caminho da escrita e nele travo uma luta surda, difícil,obscura, e até, por que não dizer, uma luta ridícula.
Que seus amiguinhos de infância que já partiram, tenham alcançado o descanso que aqui nessa terrinha não alcançaram. Creio em Deus que estejam melhores que nós, com certeza.
Siba, um beijo bem carinhoso e um bom final de semana!!!!!
Siva; obrigada pelo carinho, viu? O dia passou e eu, envolvida com o vídeo retrospectiva de Arthurzinho, nem me dei conta. Mas como para mim, esse dia, deveria ser comemorado sempre. Porque são os escritores que nos levam em suas intensas viagens emocionais. Meu desejo é que Deus me permita por muito tempo, vir aqui me deliciar com seus poemas vibrantes e apaixonados. Beijos
Siba, fez muito bem em republicar o poema, pois o quadro de pobreza se repete a cada dia. Meu abraço.
Poema cantado na primeira pessoa, mas que tantos de nós de alguma forma nos vemos retratados, vidas difíceis, infâncias meias perdidas, mas acredita que havia mais calor humano que existe agora, muito emocionante o teu poema, parabéns
beijinhos
Existe um lugar onde tudo é possivel.
Onde o amor é verdadeiro.
Onde se acorda em paz…
Onde as flores tem um cheiro especial…
E os abraços vem acompanhados de muito amor.
Este lugar é meu coraçäo…
É neste lugar que eu guardo as pessoas que amo .
E que nunca as esqueço.
Sou feliz por você morar no meu coração.
Com carinho e saudades desejo um abençoado final de semana.
Beijos carinhosos,Evanir.
Oi S.Siba,
Demorei mais cheguei. Muito emocionante e ao mesmo tempo triste esses versos que leu aqui.
De pés descalços
correndo sobre as pontes
catando raios de sol
nas asas de um beija-flor!
Meu coração tinha enredos:
Melancolia e fantasias
palpitavam como folias
e desfilavam sem alegorias.
Seu coração ainda tem enredo, não perdeu o sonho de menino.
E é por isso que venho sempre ler taus poesias.
Pra mim, vc da foto é esse fazendo pose, rsrsrs, todo empinado, bonito! Se fosse qui no rio eu diria, tem cara de marrento...
Agora homi de Deus, de onde tirou que sou escritora, vixxi bateu com a cabeça foi??
Eu só brinco com as palavras, como um sonho de menina.
Um beijo, um resto de domingo cheio de paz e algumas flores para enfeitar tua noite.
Oi, Siba
Sempre bom reler seus poemas. Este, quando li tempos atrás, me fez chorar e lembrar da minha infância tb.
E como te disse naquela época, o bom é que eramos crianças. Pois este senso da realidade e sofrimento só adquirimos com o tempo.
Bom olhar e ver o que conquistamos em experiencia, amor e amigos.
Republique outros, você tem muita coisa boa que vale a pena reler. E, com certeza, outros inéditos guardadinhos por ai. kkkkk
beijos
Sim, eu já li este poema há alguns anos, e é lindo , mais ainda por ser autobiográfico. mas qual deles é você homidideus? Quero saber!
E quantos amigos se foram... Que pena!
Um beijo!
Siba, eu ia vendo um filme na minha mente, que dor, natais iguais, crianças sempre na esperança de que algo mudasse, pais tristes sem perspectivas e vc, de toda essa tristeza, se fortaleceu e presenteou-se com esse conhecimento e discernimento, penso que a tristeza é a responsável por gerar pessoas tão incríveis como vc!!
Sou curiosa e quero saber, vc é professor? sociólogo? algo assim, conte-me tudo não me esconda nada,kkk, abraçooo, arrasou e olhe, to tentando ainda, fazer uma pesquisa sobre bolsa família, negros, pobres, efetivação dos direitos e ainda estou meio perdida, mas seu poema serve como uma luva, se caso eu fizer um slide, pedirei sua autorização para por no slide, tá??vc é incrível!
Oi querido Siba,
Amei seu poema, sua vivência real, que, por sorte, nunca vivi.
Me impressionou o realismo de suas palavras e das situações por todos vós vividas.
Também, em Portugal, se viveram tempos difíceis, embora não tão difíceis, como aí, segundo julgo.
Eu nasci, de "bumbum virado pra lua", dizem.
Olhei a foto, com muita atenção e você deve ser o que está mesmo na frente, de mãos, segundo creio, nas ancas. Será?
Beijos da Luz.
Ótimo texto. pretendo usa-lo no meu trabalho de , por ter uma descrição tão refinada do cotidiano. adoraria conhecê-lo e ter uma entrevista sua para o trabalho. É sobre a Península de Itapagipe. Mais especificamente, é a reconstrução da ocupação dos Alagados e das intervenções do Estado. Gostaria de uma entrevista de quem morou lá antes destas intervenções, de quem passou por elas e está até hoje. Você pode me indicar alguém?
Olá Ednaldo! Obrigado por gostar da poesia Alagados. Sim pode usar para o seu trabalho, sem problemas.
Como digo na poesia sou nascido e criado nos alagados meu pai foi o fundador do bairro. Sim podemos conversar, meu email: nharoldo@terra.com.br me escreva que passo meu tel.
abraços,
Nelson Haroldo
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