sábado, setembro 15, 2007

ALAGADOS(Palafitas)

Alagados (Palafitas)

Em homenagem aos meus amigos de infância.
(Especialmente aos que se foram: Helena, Chica,
Deusinha, Toinho Magriça, Mário Nagô, Carlinhos negão,
Valtemir, Vando Bandolo, Gilson Caruru, Marquinho...)

Estes versos,
são memórias e sonhos
da maré como lembrança
nos desejos da infância
vivida nas palafitas...
De pés descalços
correndo sobre as pontes
catando raios de sol
nas asas de um beija- flor!
Meu coração tinha enredos.
Melancolia e fantasias
palpitavam como folias
e desfilavam sem alegorias...

À noite
os momentos eram
infinitos, um fifó aceso
espantando a escuridão,
gatos lânguidos esfomeados,
ratos correndo dos algozes
e tamancos rachados
fugindo da leptospirose...

O tempo à noite
sempre se estendia.
Eu tentava empurrá-lo
com as mãos, pura agonia!
Ele teimava desfilar, entre
os meus dedos lentamente...
Segundos, minutos, horas e dias.
Parava o tempo!

Uma Ave Maria e um Pai Nosso
para amenizar o sofrimento...

Pela fresta,
via-se as últimas gotas
de estrelas trêmulas,
circulando sobre
tábuas podres sobrepostas
e esqueletos de caibros
sob a lua, que ludibriava os telhados...

O dia
florescia na enchente
atiçada pela maré de março.
Em cada barraco, olhos velados
retiravam o que tinham e o que não tinham.
Sufoco! O povo dos alagados
recorria a todos os santos
sob a luz de um sol minguado...
Correi marezeiros!
Há nas pontes
dependurados e sombreados:
desejos da vida, sangue em lágrimas,
trapos velhos e penicos furados
rasgando o ventre dos sonhos
sempre macerados!

Bocas de caranguejos
asas de morcegos
e nenhuma flor como desejo...

A maré cheia
convidava ao mergulho.
Crianças davam caídas,
era o prazer do corpo na água,
o debater de braços e pernas, nadar!
Ingenuidade da flor idade...
Na borda do prazer,
a cilada montava o cenário
entre lixos, galhos e estacas.
O perigo era fatal... Tarde demais!
No azul, um sol de tempestades.
A morte era crua, a felicidade era fugaz.
Na adversidade, mais um que se vai!
Erguia-se um silêncio,
havia uma alma desesperada,
em fuga, pedia a extrema-unção!
A tarde uivava, a dor se curvava
e nenhum padre, nenhuma benção,
mas, a noite te virá em orações!
Naqueles momentos,
a maré cumpria a sua sina.
Vestia-se de cinza
e nos desesperos das lágrimas,
uma chuva fina...

Mas, não sei, era paradoxal!
Pratos vazios, tripas em revoluções
urubus, cachorros e ganhamuns
lutavam por comidas na beira mangue.
Siris magros e mariscos aferventados
crianças amareladas exangues!
O prato se repartia, mercúrio disputados,
enquanto, amebas e lombrigas faziam greve de fome...
Novo dia chegava, com ele, dona esperança
enganava a fome, a miséria... saia de fininho
e se jogava das pontes. Comida para barrigas vazias!
Nos telhados, a morte, despudoradamente ria,
filmava a cena de binóculos na aba de pratos sonhados...

Sob um céu de jade,
natal chegava com luas estreladas!
Nos nossos olhares quanta alegria
escondendo a dor, a melancolia...
Os barracos eram enfeitados,
no piso de tábuas carcomidas
a areia branca dava um toque mágico,
nos alagados enfim, tinha vida!
Nos jarros de barro,
galhos de pitanga e espada de Ogum,
folhas de arruda presas nas portas,
sal grosso nos telhados e alfazema
para espantar os maus olhados,
gatos pretos ludibriados...

A noite era o olhar e viria em clarões!
Nas janelas nenhum chinelo, nenhum tamanco.
Papai Noel nunca vinha, ele disfarçava, enganava
e nem ao menos um presente, uma bola, uma boneca...
As crianças da maré sonhavam descalças!

No fundo de nós,
uns olhos de tormentos
torturados por natais iguais,
à procura de manhãs desiguais!

Valei-nos, Jesus menino!
Lembrai dos vossos pequeninos,
em vossas mãos os nossos destinos!

O Sibarita
Ouça a Sibarita Web Rádiooperando em fase experimental. Aceitamos sugestões!
Caros leitores, estou repetindo a poesia "Alagados" devido o Porta Curtas desta semana "ILHA DO RATO"(ilha que xistia nos alagados antes de entulharem com o lixo de toda Salvador) se referir aos Alagados(Palafitas). Este Curta foi feito pela Comunidade da Vila Rui Barbosa, local, onde nasci e me criei. O Diretor do filme é Joselito fundador do Bangunçaço juntamente com o Sr. Anísio presidente do Conselho Comunitário dos Moradores da Vila Rui Barbosa.
Cliquem no Porta Curta Petrobrás, quando abrir a página cliquem em ASSISTA, ai começará o filme.

"Bitchu e um menino das Palafitas. No caminho da escola, ele vende "sonhos" para ajudar sua familia. Mas o sonho real de Bitchu e de achar um jeito para navegar ate esta Ilha que entrou na sua cabeça a noite passada."
Boa diversão!


5 comentários:

Anônimo disse...

Uau. Tocante, emocionante. E triste.

"Bitchu e um menino das Palafitas. No caminho da escola, ele vende "sonhos" para ajudar sua familia. Mas o sonho real de Bitchu e de achar um jeito para navegar ate esta Ilha que entrou na sua cabeça a noite passada."

Adorei isso!
Apareça lá na Toca, voltei a postar. ;)
Beijo grande.

Leticia Gabian disse...

Como já conheço essa homenagem, só posso repetir que é das melhores coisas já escritas por mecê.
Tô de volta, moço. Cheia de uma saudade que pensei que ia me deixar e ficar suspensa no ar...Mas, foi só por um breve espaço de tempo. Tô aqui, outra vez a desaguar lembranças.
Beijão, cumpadi

Luiza disse...

bom, na verdade ja li aquele livro inteiro ha tempos atras.. mas hoje em dia soh abro nesse paragrafo e paro.. acho q eh pq ele eh tao bom q vale pelo livro todo hahahha..
nah, brincadeira.. o livro todo eh tao bom qnto esse paragrafo..
beijaoo

Maria disse...

Que beleza acabei de ler, Sibarita....
Que coisa linda você escreveu...
Obrigada pela partilha.

Beijos

Nilson Barcelli disse...

Gosto de ler o que escreve.
A sua escrita é madura (pronta a ser devorada... lida com agrado).
Bfs, abraço.